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terça-feira, 9 de novembro de 2010

mais verde ....




Cap 22 do Livro: Verde Profundo de Miguel Rocha

08.03.07

Forró no seringal



Era costume dos ingleses fazer festa nos clubes chiques de Recife. Depois de certa hora, a festa antes reservada, agora seria para todos - “for all” - ou forrol e posteriormente, apenas forró. Os seringais também tinham os seus forrós. Geralmente aconteciam durante a celebração do dia do santo padroeiro do lugar.



João e Malaquias foram a uma destas festas animadas por uma sanfona, um cavaquinho e um pandeiro. E o rabo de cão, que é um bastão com vários pedaços redondos de folha de flandres, atravessados por um prego que as fixam no tôpo do bastão, como se fossem moedas, uma em cima da outra e que giram em torno do prego, livremente. Na extremidade inferior, um pedaço de sernambi amortece as batidas no chão. As moedas se chocam. Marcam o compasso. O salão ficava cheio de gente, mulheres velhas, mulheres casadas e as poucas ainda solteiras, apenas adolecentes. As mais velhas já estavam todas casadas. No grande terreiro havia bancas vendendo refrescos, doces e produtos do milho. E cachaça.



Os irmãos não sabiam dançar e nem tinham muito interesse nisso. Mas estavam lá, para se encontrar com os conhecidos. Por isso se acomodaram nos bancos de madeira dispostos ao longo das paredes internas do salão. Não podiam conversar, por causa do barulho da música. Ou se comunicavam falando muito alto, para se fazerem ouvidos.



Em dado momento uma moça bonita convidou o Malaquias para dançar. Era a mulher do Dé, filho do seu De Lucas. Dé corninho era como todos o chamavam, quando êle não estava por perto. Malaquias disse que não sabia dançar, mas ela insistiu, disse que lhe ensinaria e ele concordou. Rodopiou, desajeitado, pelo salão apinhado de dançarinos. Alguns dançavam com outros homens, por falta de damas. Malaquias já estava suado, como todo mundo, e até gostando daquela experiência. Era a primeira vez que dançava. Sua dama era animada e desinibida. Cheirava a sabonete importado e a perfume Royal Briar.



Num dado momento, deu uma rodada. Quando parou, sentiu algo contundente espetando seu flanco, logo abaixo das costelas. Olhou de lado e sentiu o bafo de cachaça de um bêbado lhe salpicando cuspe no rosto enquanto lhe falava ao pé do ouvido: “dança direitinho com ela, senão tu vai dançar comigo.” E aliviou a pressão da ponta da faca, ainda na bainha e seguiu dançando com sua dama.



Malaquias ficou apavorado e quis parar. A moça insistiu:

n Liga não. Ele tá bêbado. É meu irmão.

n É, eu sei que êle é inocente. Mas pra mim, já chega.





E voltou a sentar-se ao lado do irmão que nada percebera. Logo depois houve um começo de arruaça. O patrão parou a música e ameaçou botar no tronco, qualquer arruaceiro que quebrasse o encanto da festa. E avisou: “ tem formiga mossoró, no tronco.” E passeou pelo salão exibindo a pança, soltando baforadas do seu charuto cubano. Sempre acompanhado de puxa-sacos e capangas, era êle o todo poderoso que fazia e desfazia. Decidia o destino daqueles pobres mulambos de seres humanos, enquanto libras esterllinas caiam em cascata, na sua conta bancária em Manaus. No porto do barracão, os paquetes aportavam cheios de mercadoria contida em caixotes onde se liam as iniciais do seu nome, e o nome do seringal.



Tudo aconteceu por causa da Bita, a mulher do Dé, o filho do seu Dé Lucas. Ela era a mulata fogosa para onde todos os olhares masculinos convergiam. E o zeloso olhar das mulheres casadas que pressentiam seus ninhos sob ameaça. Não se podia botar defeito nela. Seu vestido de chita, solto em volta do seu corpo farto de curvas, seios atrevidos e bumbum arrebitado, deixavam os homens babando. Todos sabiam que ela não era o tipo de flor que se cheira, mas todos queriam dormir com ela. Inclusive o patrão. Êle também gostava de flores silvestres.



A banda parou de tocar. Agora dava para as pessoas se ouvirem. Quando a Bita cruzou o salão, uma mulher beliscou o braço do marido. Um aviso para êle saber que ela estava atenta aos seus olhares indiscretos. Enquanto èle olhava as mulheres do salão, ela policiava os seus olhares. A mulher que estava ao lado, comentou: os homens não prestam. São todos assim. Quando vêem um rabo de saia, se derretem todos.



Um professor, visitante que chegou do Rio de Janeiro, convidado do patrão, que estava sentado ao lado, retrucou: É o instinto masculino. Sempre foi assim desde todos os tempos. Os machos, de todo o reino animal, na sua maioria absoluta, estão sempre procurando um terreno fértil para plantar a sua semente e assim, garantir a perpetuação da espécie. O homem sobreviveu aos animais pré-históricos e a todas as provações e catástrofes, graças a esse instinto. É por isso que hoje estamos aqui.

Em toda história de amor tem pecado. E é por isso que existe o perdão, complementou.



A mulher que falara, não respondeu. Ficou só olhando aquele homem bizarro, de barba e grandes bigodes, que falava aquelas coisas extranhas, pouco compreensíveis para ela. Mas aquele homem era professor, ela o sabia. Então, apenas afirmou com a cabeça, dizendo que concordava. Mas continuava pensando como antes.



Quando a patroa viajava para Manaus, o patrão convidava a mulher do Dé para ajudar nas tarefas da cozinha do barracão. O Dé ajudava nas outras tarefas da casa e não demonstrava qualquer traço de ciúmes da mulher, pois sabia que o patrão cuidava bem dela e a êle, concedia sempre as tarefas mais leves. O patrão era bom com êle. Bita lhe dava sorte. Muita sorte.



O Dé sabia que sua mulher comia capim do outro lado da cerca, mas era apaixonado por ela. Doente por ela. Perdoava-lhe todos os pecados. Toda história de amor tem pecado e tem perdão, como dissera o professor. Além do mais, se êle brigasse com ela, ela iria embora, cairia nos braços de outro e era êle quem iria dormir sòzinho. E mais: ela o dominava completamente. Êle era enfeitiçado por ela e ela o mantinha sob o cabresto de rédeas curtas. Pintava e bordava com êle.



Consta que numa destas noites de forró, houve uma grande arruaça. Por causa da Bita, é claro. O patrão chegou e botou as coisas em ordem, os brigões amarrados ao tronco. Nas festas do interior, nos seringais, os personagens eram homens rudes e valentes, acostumados com a violência. Nao tinham medo de matar. Não tinham medo de morrer. Não pensavam nas consequencias de um crime. Por isso tudo, mais a influência do alcool ingerido, surgiam os conflitos. Pelas mulheres os homens matavam e morriam. E não eram raros esfaqueamentos e homicídios. Era bastante comum alguem perder a vida nestas festas e seus familiares voltarem pra casa, de luto, chorando a perda.

.

A patroa viajara, por isso o patrão botou a Bita de castigo na sua alcova, com colcha de cetin e lençois macios, de algodão do Egito, e trancou a porta por dentro. Só sairia de lá no dia seguinte, quando as coisas estivessem absolutamente calmas. O Dé dormiu no banco de madeira, montando guarda, bem perto da porta, do lado de fora. Chegou até ouvir algum barulho suspeito, suspiros, talvez.. Mas sabia que o bom patrão estava apenas dando bons conselhos para sua nega. Não podia ser diferente. Era por tudo isso, lhe chamavam de Dé Corninho.



Era no tronco, à semelhança do pelourinho, em Salvador da Bahia, onde ficavam amarrados os desordeiros.

Um pouco de melaço pincelado nas pernas, animaria as formigas e aumentaria o castigo do infeliz condenado. Porém a festa transcorreu sem mais alvoroço. E quando o dia vinha raiando, liberados os presos, agora humildes, com seus corpos empolados pelas picadas de formigas, cada um ia caminhando para a sua canoa para seguir remando para sua casa. Os bêbados, caídos pelo chão, davam trabalho aos seus parceiros. Mas o dia seguinte era domingo, podiam descansar. E quando chegasse a segunda-feira, todos estariam em suas colocações, labutando as suas tarefas e pensando na Bita.



Malaquias ouviu muitas histórias da Bita e soube o por quê da alcunha do Dé. A mulata não lhe saia da cabeça, mas sabia que não podia se apaixonar por ela. Ela era casada com o infeliz – ou feliz? – Dé. Sua amada devia estar em algum lugar. Um dia haveria de encontrtá-la. Naquela noite sonhou dançando com a Bita, que descera do céu, grandiosa e bela. Depois o Dé chegou e tomou-lhe a dama. E saiu dançando, rodopiando com a linda Bita que, como êle, também viera lá do nordeste. Mas ela veio só para enfeitiçar os homens do seringal. No sonho, logo era a Bita, descalça, quem dominava o “show”, conduzindo seu par. O Dé se transformava em minotauro.Que sonho estranho! Bita, com seus longos braços erguidos, segurando-o pelas mãos, nas pontas do dedos, que logo se transformavam nas pontas dos chifres de um touro “long horn”. Gingava para lá e para cá, conduzindo-o, no rítimo imposto pelo animado sanfoneiro, no meio da roda animada, formada por suados seringueiros e mulheres presentes, todos batendo palma, acompanhando o rítimo, à luz minguada do farol a querosene, enquanto se ouvia o desarrolhar de garrafas e o tilintar de copos.



Bita conhecia bem os seus poderes. Por causa de ciúmes Dé já ensaiara separação várias vezes, mas logo voltava rastejando, mendigando amor, pedindo para ficar. E cada vez a bondosa Bita lhe concedia o perdão. Tinha pena dele. E para êle, com o pêso dos chifres na cabeça, e o ciúme corroendo por dentro, a vida era um inferno. Mas era entre os braços e pernas da Bita que êle encontrava o céu e a única razão pra viver. Bita era, ao mesmo tempo, céu e inferno. A mulher que lhe concedia o colo onde repousava a cabeça para dormir e sonhar. Bita era o sol. O centro de um sistema onde os homens eram os planetas que orbitavam, gravitando ao seu redor. E o seringueiro Dé era o planeta mais próximo.

Um comentário:

  1. qndo eu olhei a miniatura da foto achei q tinha um aviao descendo no rio, mas é o céu! kkkkkkkkk!

    ótima foto!

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