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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Seringueiro ...



CAP 25 – O seringueiro Malaquias



24.jan.2007



Malaquias já podia se considerar um seringueiro. Afinal era ele quem dava conta da estrada que lhe fora confiada pelo patrão. Já não dependia dos cuidados do seu amigo Raimundo Belarmino, o mestre que ensinara a cuidar das seringueiras.



Sentia-se livre da censura dos olhares atentos do cuidadoso Belarmino. O que ele produzisse agora seria assentado no "Borrador", o caderno de contas do patrão, para seu crédito e posterior confronto com seus débitos. Sabia que se conseguisse um bom saldo, poderia resgatar sua irmã, que ficara na distante Olinda, de quem jamais recebera qualquer notícia, mesmo tendo-se passado tantos anos. Por enquanto era apenas um sonho. Mas este sonho seria o foco da sua vida e ele não deixaria de perseguí-lo. Ele e João, seu irmão mais próximo, tinham o mesmo vigor e o mesmo propósito. Trabalhariam duro, para atingir o objetivo.



Malaquias nasceu em Recife, mas se criou no sertão. Deu seus primeiros passos ouvindo o mugido dos animais, sentindo o cheiro de fazenda. Órfão de mãe ainda muito pequeno, foi Júlia quem cuidou dos seus primeiros anos de vida. Já com cinco anos, pouco antes de deixar o sertão rumo ao Amazonas, Júlia o levava para ver a ordenha das cabras. Quando cresceu mais um pouco, sentiu que queria ser pastor. Dono de um rebanho de cabras. Era este o desejo dos meninos do sertão, dos meninos da sua idade.



Logo que entrou na floresta com o Belarmino, sentiu todos os medos do mundo. Uma reação natural de quem enfrenta o desconhecido. Aprendeu a movimentar seus pés com cuidado, para não pisar numa cobra venenosa e evitar fazer ruído nas folhas secas. Isso poderia chamar a atenção de uma onça pintada, muito comum na floresta. Muito temida pelo perigo que representava. Não eram raros os ataques a seringueiros incautos. Muitas vezes, fatais. Para se proteger dos espinhos, calçava sapatos de borracha feitos por ele mesmo. Eram pouco confortáveis, provocavam mau cheiro nos pés, mas protegiam.



Bem cedo, todas as manhãs, tomava o café magro que preparava, acomodava o peixe seco e assado na panelinha de ágata com farinha, balde para colher o leite, espingarda a tiracolo e na mão, o facão balançando ao lado do corpo. Lá se ia o garoto imberbe, solitário e silencioso, para cuidar do seu rebanho, que não era de cabras. Ia ordenhar aquelas árvores maravilhosas que produziam o leite mais caro do mundo. O leite que se transformaria em pelas de borracha, percorreria muitas léguas rio abaixo, cruzaria as fronteiras e que, em metamorfose constante, mais uma vez se transformaria nos pneumáticos daqueles aviões que permitiriam à força dos Aliados, ganhar a guerra. Mais do que isso, o leite maravilhoso que transformaria seu sonho em realidade. Bastaria trabalhar com afinco e escapar do ataque dos índios, com suas flechas envenenadas. Ou dos mosquitos, com suas agulhas afiadas, para sugar o sangue e plantar a semente da malária.



Estabeleceu um bom relacionamento com aquelas árvores, como lhe ensinou Belarmino. Já não sentia a floresta como uma grande prisão. A floresta deixou de ser aquela grande muralha verde, isolante. Parecia mais a expressão da liberdade. Com aquelas seringueiras convivia todos os dias. Visitava cada árvore, duas vezes por dia. Uma vez para sangrar. Outra para colher o leite. Cortava-as com cuidado, como lhe fora ensinado. Cuidava para não ferir o cerne. O corte seria superficial, apenas na casca da árvore. Quase um afago. A seringueira não se ressentiria disso. Seria como o cortar das unhas, para nós, seres humanos. Estabelecia-se assim um relacionamento quase simbiótico. Ele fazia o corte com cuidado, a árvore lhe retribuía com seu sangue branco, sem glóbulos vermelhos. Os anti-corpos cuidariam de sarar o ferimento superficial. Uma relação de amizade e dependência mútua. Com o passar do tempo, ele conhecia cada árvore, seus menores detalhes. A forma dos seus galhos, das raízes e tudo mais. Algumas ganharam nomes. Inspirados nas suas formas ou em alguma coisa que lhes diferenciasse das outras. Porque vivia sozinho, a maior parte do seu tempo, para não ficar mudo, falava com as árvores, dirigindo-lhes palavras carinhosas, expressando sua gratidão. Cortava-as todos os dias porque elas lhe ofereciam o leite. Ou seria o contrário? Elas lhe ofereciam o leite, por serem ordenhadas todos os dias?



Conviver com a floresta é um aprendizado permanente. Quando ele viu pela primeira vez a floresta, viu apenas uma extensa pincelada verde, horizontal, sem muita expressão, em contraste com o azul do céu distante. Trabalho de um artista desconhecido, talvez amador. Não lhe dizia muito. Depois, percebeu que não era o verde, apenas. Mas, muitas tonalidades de verde brincando com a luz do sol. Mais um pouco, e percebeu que havia árvores de diferentes tamanhos e formas. Galhos e folhas. Flores e frutos. E as lianas que assustavam, fantasiando-se de serpentes e descrevendo os mais belos movimentos nas suas curvas e formas. Tem mais. As árvores hospedam parasitas e plantas epífitas, insetos, lagartos e outras expressões de vida, formando um micro universo. Um pequeno mundo para ser descoberto. E admirado. Assim Malaquias foi se adaptando e crescendo no seu relacionamento com a selva. Seus sentidos foram aguçados. Seus ouvidos ouviam mais, seus olhos viam mais, compreendiam o que se passava na penumbra da floresta. Sabia interpretar a natureza que lhe rodeava. Quando o lodo - um tipo de alga verde - começa a se formar, é porque as águas do rio logo vão parar de subir. O senhor sapo fulano de tal parou de cantar: amanhã vai ser dia de sol. Esse conhecimento era a ferramenta do seringueiro para a sua sobrevivência na selva. Era o segredo da vida.



Antes de seguir para o seringal, Malaquias morou em Manaus, a pequena e rica cidade de 38.000 habitantes, do início do século XX, incrustada nas margens do caudaloso Rio Negro, um dos maiores rios do mundo, em termos de vazão. O único rio que conservou o nome que lhe foi dado por Francisco Orelhana, no dia 3 de Junho de 1542. Morou com a madrinha, numa casa da rua Taqueirinha, por trás do edifício Iaptec, -- acho que é assim que se chamava -- o primeiro edifício construído na cidade, muitos anos depois, 10 andares apenas. Fica perto do antigo cais da Manaus Harbour, que os índios e caboclos chamavam Manausarba. Nos poucos meses que morou na cidade, aprendeu o ofício de funilaria e freqüentou a escola.

Dono de uma memória fotográfica, privilegiada, aprendeu a ler logo depois das primeiras aulas, surpreendendo a professora e os outros alunos. Desenvolveu uma caligrafia invejável. Tinha a mão domável e a letra bonita. Dispunha sempre de uma caneta e um tinteiro. Assim poderia praticar sua escrita na floresta distante, escrever seu diário, descrever sua solidão.



Quando estava em casa, ajudava os empregados que cuidavam da casa, fazia mandados, indo à taberna para comprar alguma coisa que a madrinha deixara de comprar no mercado. A alcova do casal ficava no piso superior. O padrinho, um homem de pouca saúde, passava muito tempo por lá. Às vezes descia para ir à funilaria inspecionar os trabalhos. Raramente descia para comer na sala de jantar. Pela manhã, todos os dias, Malaquias recebia uma caneca com café sem leite e um pãozinho francês. Era esse o seu desjejum, insuficiente para as necessidades do seu corpo em desenvolvimento. Para matar a sua fome, comia alguma fruta que porventura encontrasse em alguma árvore frutífera. Todos os dias sua madrinha mandava que ele levasse uma tigela de mingau ou de sopa, para o padrinho adoentado. Todos os dias, enquanto subia as escadas de acesso ao pavimento superior, êle aproveitava para tomar um gole, antes de entregar a encomenda. Todos os dias, ao descer as escadas, êle comia o que o padrinho não consumira. Por isso êle torcia para que o padrinho não melhorasse o apetite.



Malaquias era proibido de brincar na rua com outros meninos. Mas ele, sempre que podia, dava um jeito de escapar e brincar um pouco, com seus colegas de rua. Tinha uma unica roupa bonita para frequentar a escola e de ir para a missa aos domingos. E um calcao muito grande, para o seu tamanho. Era vestido assim que ele brincava de bola, uma pelota de sernambi, sempre segurando o calcao, com uma das maos, para o calcao nao cair.



Um dia conseguiu entrar num clube. Os pais cuidavam dos seus filhos enquanto cruzavam a piscina, aprendendo a nadar. Malaquias olhava de longe, segurando o seu grande e unico calcao. Um senhor bondoso se aproximou dele, fez-lhe um afago na cabeca e o convidou a nadar. Malaquias nao se lembrava de ja ter recebido qualquer afago, qualquer demonstracao de amor e ficou muito comovido. Nao conseguiu falar, nem mesmo agradecer. Escondeu-se num canto para chorar. Sentia a falta do pai, da mae e da Julia, sua irma.



Numa página do seu diário, já no seringal e distante de Manaus, assim se expressava:



Hoje é um dia qualquer do mês de maio. Não sei que dia é. Todos os dias faço um corte num dos esteios da cabana. Um debaixo do outro. É o meu calendário. Mas às vezes me esqueço de fazer o corte. Às vezes, faço dois, porque não tenho certeza se já marquei. Então, não sei mais quando é sábado ou domingo. Estou perdido, mas continuo marcando, sempre que me lembro. Mas isso não me faz diferença. Para mim, todos os dias são iguais. Todos os dias o sol aparece no mesmo lugar. Todos os dias, se põe. Todos os dias, dia e noite se alternam. Um está sempre esperando pelo outro e não se cansam. Fazem isso há milhões de anos.



Todos os dias faço as mesmas coisas, percorro os mesmos caminhos. As seringueiras já me conhecem. Eu também as conheço todas. Deixei de me preocupar com o futuro. O meu futuro é hoje. Conheço o meu passado, mas não posso controlá-lo. Não conheço o meu futuro, mas posso interferir, com meus atos, para que possa ser melhor ou pior. Então eu vivo no meu futuro, o dia de hoje, dependente das minhas atitudes de ontem. O futuro é igual para mim e para os outros. Mas quase ninguém se apercebe disso. E ficam sempre a espera do futuro, porque é lá que está a sua felicidade. Mas o futuro deles teima em nunca chegar. Por isso nunca serão felizes. Tenho 24 horas todos os dias, que são todas minhas. Só minhas e ninguém poderá subtraí-las de mim. Posso usá-las como bem me aprouver. Todos os outros também têm suas 24 horas. Ninguém poderá ter mais. Nem o patrão, nem os poderosos, nem reis, nem rainhas. Perante o tempo, somos todos iguais.

Chove muito. É natural que seja assim, nesta época do ano. As águas sobem e vão engolindo as terras mais baixas. Os animais vão ficando confinados, por isso as restingas, nesgas de terra mais altas, são os pontos onde os animais se concentram. E é para lá que os grandes felinos se dirigem. Onça-pintada, suçuarana e maracajás. Os caçadores, também.

Hoje observei as saúbas, as formigas cortadoras de folhas. Numa fila interminável, uma atrás da outra, seguem a procissão, cada uma conduzindo seu fardo, diligentemente. A minha presença de gigante, lhes é indiferente. Apenas me ignoram e continuam suas tarefas, conduzindo a oferenda que depositarão aos pés da mãe rainha. Não se esquivam do trabalho e raramente pedem ajuda. Desta vez não eram folhas que transportavam, eram as flores amarelas de uma acácia. Acho que vai acontecer uma grande festa no formigueiro. Seria uma festa de núpcias? Não. O casamento das formigas é um grande acontecimento, mas é uma cerimônia que se realiza durante o vôo nupcial. A única vez que vão voar. Por isso se preparam para a grande festa. Seus vestidos de noiva, são as asas, a mesma indumentária que seus pretendentes usarão, uma única vez na vida.



As noivas usarão as asas mais bonitas, por isso nunca estarão tão belas. Ferormônios no ar. Os noivos estarão nervosos. Bem-te-vis e andorinhas percebem a movimentação. Onde há festa, há comida e comensais e eles serão os convidados. Falta apenas o presente que vem do céu, para a festa começar: a chuva que vai amaciar a terra. E quando a chuva cessar, miríades de participantes receberão o sinal e os nervosos nubentes alçarão o vôo para uma das mais belas manifestações do amor. Só as mais espertas voltarão à terra, escapando dos predadores. Então, depois de despir suas asas, começarão a cavar a terra macia, para estabelecerem a nova colônia e perpetuarem a espécie. Fiquei muito tempo a observá-las.



O chão é o intestino da floresta. Ali todos os dejetos, restos de frutos, folhas e restos de alimentos são digeridos. Debaixo da camada úmida e quente, sob os nossos pés e longe dos nossos olhos, desenvolvem-se bactérias, vermes, nematóides e outros micro-organismos. Uma ferrenha disputa por alimentos acontece dentro da escura camada do solo, em escala microscópica. Insetos e lagartos também fazem parte deste vasto batalhão de seres famintos.



Olho para o lago e vejo suas margens emolduradas pelo verde do arroz silvestre. Um verde-claro em contraste com o verde-escuro da mata de igapó, adjacente. Quando as águas baixaram, expuseram suas margens ao sol. As sementes de arroz silvestre, do ano anterior, estavam lá, esperando pacientes, pela oportunidade de germinar. Germinaram e começaram a crescer. As águas começaram a subir, atingiram a plantação e tentou afogá-la. Esta reagiu e começou a crescer na mesma velocidade que a água crescia. Às vezes, 20 centímetros por dia. Mas um dia, quando estiver madura, vai perder a corrida e para não se afogar, suas raízes se desprenderão do solo lamacento e flutuará. Uma ilha flutuante de capim arroz, errante, peregrinará pelo lago, ao sabor do vento. Suas sementes alimentarão patos e marrecos antes da ilha se desintegrar e desaparecer na vastidão do lago. As sementes que sobrarem, serão dispersas e esperarão, pacientemente, pelo próximo verão, escondidas e protegidas pelas águas do Lago de Coari. E o ciclo se repetirá, como vem fazendo ao longo dos séculos.

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